20 junho 2011

Dos ombros ao coração


Já era tarde quando Eliana chegou em casa, depois de um dia cansativo. Foi um dia atípico, iniciado bem cedo na enfermaria do hospital, seguido pela UTI, e finalmente, pelo consultório lotado de pacientes. Deixou sua bolsa pesada e seu estetoscópio na pequena escrivaninha branca, e sentou-se na cadeira vazia, onde uma almofada já lhe esperava desde a manhã. Estava muito cansada. Seus olhos fundos teimavam em se fechar, mesmo que seu rosto se pronunciasse com constantes bocejos. Parada ali naquela sala desarrumada olhou para seu estetoscópio já antigo, remendado por fitas adesivas desgastadas, já sem uma das olivas. Para um estetoscópio tão freqüentemente usado, oito anos já era tempo demais. Quase sem perceber, interrompendo o silêncio do apartamento vazio, esquecendo-se de que se dirigia a um objeto inanimado, sussurrou:

- É meu amigo, acho que já trabalhou demais. Está chegando sua hora de descansar e deixar de se incomodar com estas fitas adesivas que o apertam. Amanhã mesmo, a caminho do hospital, vou trocá-lo por outro, porém mais leve. Até meus ombros têm ficado cansados demais.

E dito isso, calou-se, respeitando o cansaço que a mantinha sentada.
Sei que não me escuta, apenas ausculta através de mim. Mas como após estes longos oito anos, dois meses e vinte e dois dias, você se dirigiu a mim... sinto-me no direito de responder. Hoje foi um dia difícil para mim também. Sei que não reparou, mas aquele último paciente em que você não conseguiu auscultar nenhuma alteração nos pulmões... sinto em decepcioná-la, mas havia sim estertores crepitantes bilaterais em bases. Não consegui transmiti-los a você. Uma das fitas adesivas que mantinha meu tubo de condução íntegro foi vencida desta vez por uma pequena fissura, que há tempos insistia em aparecer. Neste momento, em que me encontrava entre você e o paciente, tive a consciência exata que havia chegado ao fim. Amanhã, no mais tardar às dez horas, horário no qual sempre nos encontramos na UTI, você perceberia que algo estaria errado. Como a conheço bem, sei que questionaria se os seus pacientes hipervolêmicos teriam misteriosamente compensado em apenas 24 horas, ou se finalmente, eu já não lhe serviria mais. Fico ao menos aliviado que tenha decidido me afastar sem que percebesse esta última ausculta ineficaz. Queria encerrar este meu caminho com mérito. Não gostaria de gerar em você sequer uma mínima decepção.

Lembro-me muito bem da primeira vez que a vi, ao abrir aquela caixa não mais escura, onde fiquei por tantos e tantos meses. Sei que não foi paixão à primeira vista, já que demorou a me escolher, encantada pela cor cinza grafite daquele outro. Mas no final das contas, adorei que tenha me escolhido por minha maior capacidade de trabalho. Concordo que beleza não é tudo mesmo. E sinceramente, se tivesse optado por aquele cinza, já estaria com outro há muito tempo. Ele era tão fraquinho, coitado. Há uns dois anos atrás, imaginei tê-lo visto em outros ombros. Temi amargamente que o visse e desistisse, antecipadamente, de mim. Talvez eu seja mesmo mal resolvido até hoje em relação a isto, já que ao contrário de você, assim que a vi, sabia que não mais poderia ser de ninguém.


Então agora digo o porquê de estar com esta sensação estranha, de tristeza misturada com alívio, de não mais poder acompanhá-la em seus dias. Estou muito cansado, mas não de você. Durante todos estes anos me orgulhei do nosso trabalho. Nos primeiros anos de faculdade foi difícil lidar com sua angústia ao auscultarmos um paciente. Estava com minha máxima capacidade, mas mesmo assim, por muitas vezes você ficava descontente. Até que sempre, no dia seguinte, após sua insistência em passar horas debruçada nos livros de semiologia, finalmente sentia-se aliviada ao entender o que escutávamos. E assim, eu ia aprendendo com você. Lembro bem que nesta época auscultava seus pais todos os dias para seu treino. Até hoje, quando os vejo, sei exatamente como são por dentro... pelo menos de todos os seus ruídos internos eu sei. Tudo bem, falarei sério agora. Vejo que está prestes a tomar coragem e se levantar, abandonando a mim e a esta almofada amarela tão desgastada e feia. Lembro bem que ao comprá-la não era assim tão ictérica. Era marrom. Sim... deveria aposentá-la também. Não faz jus ao repousar as suas costas... e ainda fica me olhando a noite toda quando me deixa aqui. Ainda bem que nunca me deixou em cima dela.

Fico feliz em termos trabalhado juntos. Observei, ao longo destes anos, que minha espécie tem sido cada vez mais subutilizada. Escutei por aí, que o primeiro estetoscópio foi desenvolvido em 1816, por um francês chamado René Laennec. Fico pensando quantas mudanças ocorreram desde então. Imagino que naquela época devíamos ser tão valorizados, que só poucos nos possuíam. Devíamos ser úteis para alguns diagnósticos, mas acredito que o tratamento não devia ser muito diferente, já que existiam poucas opções para complementar o diagnóstico. Fiquei sabendo em sua aula de radiologia que por volta de 1895, foi realizado o primeiro raio-X, o que foi ótimo para confirmar o que auscultávamos na prática. Imagino ter sido este um momento crucial para nosso processo de auto-afirmação. Antes, não sabíamos se estávamos certos. E de lá pra cá, muitas mudanças ocorreram. Nunca fomos abandonados ou negligenciados, pelo contrário, desde então temos sido o instrumento mais difundido entre os médicos. Mas sinto que esta minha geração, e certamente as que virão posteriormente, tem descansado mais por sobre os ombros cobertos por impecáveis jalecos. Alguns colegas meus, inclusive, nem saem mais de casa. Ficam esquecidos dentro de gavetas fechadas, distantes de qualquer tórax ou abdome. Ficam lá, escondidos ao lado dos esfigmomanômetros. Acho que esta situação só não está mais grave devido às freqüentes campanhas contra a Hipertensão Arterial.

E é diante desta triste realidade que só tenho a agradecer a você, que sempre me deu valor. Tudo bem que por alguns dias preferiria ter ficado em casa, na gaveta fechada, não tendo que me debruçar em seus ombros tão cedo e tomar vários banhos de álcool durante o dia. Mas nada era pior do que ter que aguardá-la ansiosamente em alguma bolsa, até que retornasse de suas férias. Como eu sofria diante do silêncio... e de seus batons que insistiam em marcar meu diafragma. Não me lembro de você ter me esquecido um dia sequer em casa, tanto no período da faculdade, como agora, em sua residência médica. Sei que naquele dia, em que fiquei em cima desta mesa aqui – sendo observado por esta almofada ictérica – não foi por esquecimento seu. Você não iria me utilizar em uma sala de aula mesmo. Prefiro não acreditar que tenha usado outro colega meu neste dia. Mas... não falarei sobre isso. A propósito, no dia seguinte, não fiz aquilo de forma planejada, por mágoa ou revolta. Sua nota foi ruim na prova porque seu professor é mais experiente e auscultou uns roncos que também tinha auscultado, mas que você não conseguiu denominar. Não fui desleal com você.

O momento em que mais tive medo – desespero, seria o termo mais adequado – foi ao ouvir que você considerava se especializar em cirurgia. Pensei que os prováveis quatro anos que ainda viveria ao seu lado, após o término da faculdade, seriam abreviados de forma dura e injusta. Felizmente você mudou de idéia e, para minha alegria – e grande trabalho também – resolveu se decidir por uma especialidade clínica. Mesmo com tantos clínicos por aí, ainda assim, reconheço que foi imensa a minha sorte ao ter ido morar especificamente em seus ombros. Imagino quantos dos meus encontram-se neste momento sendo utilizados apenas como um acessório do imenso estereótipo criado sobre a figura do médico. Fico feliz de não ser apenas o estetoscópio de um estereótipo. Isso seria pouco para mim.

Ao mesmo tempo, como disse há pouco, sinto-me aliviado. Não sei qual será o destino de minha espécie, neste caminho que sua profissão está tomando. Sei que posso estar exagerando – costumo mesmo exagerar os sons – mas me preocupo se daqui a alguns anos ainda seremos úteis. Os médicos cada vez confiam menos no que auscultam, no que examinam, no que ouvem sair da boca de seus próprios pacientes. Estão presos em uma insegurança tamanha, que dá lugar aos pedidos de exames desnecessários, que substituem até o raciocínio, fruto de noites e noites de estudo em cima dos livros. É como se estas noites nunca tivessem existido. Não digo isso me sentindo revoltado com os colegas da espécie dos exames de imagem, de urina, de sangue e outros. Sei que são instrumentos também importantes, mas para complementar. Tenho sentido que nós estetoscópios, nem para complementar servimos mais. Não... não sou melodramático. Sou realista.

Sinto-me honrado em ter ficado ao seu lado neste período, que certamente foi o mais importante de sua formação profissional. Tive presente em suas dúvidas, em seus erros e acertos, em muitos diagnósticos bem feitos, e também nos que provavelmente deixamos de fazer. Sentirei falta dos seus ouvidos, hoje bem melhores do que há oito anos. Sentirei falta também das vezes em que fechou a porta e pediu silêncio para aperfeiçoar meu trabalho. Das vezes em que o raio-X confirmou o que esperávamos e principalmente, das diversas vezes em que optou por nem pedir tantos exames. Sinto-me honrado por ter caminhado ao seu lado – ou melhor, em seus ombros – tendo percorrido um caminho paralelo ao que sua profissão insiste em seguir. Sentirei falta de minha amiga semiologia também. Espero que ela sobreviva, não tendo que se apertar cada vez mais, em livros resumidos.

Espero que não desanime e persista assim, sem esquecer que você é o maior dos instrumentos da medicina... muito maior do que todos estes que a tecnologia nos impõe. Que não esqueça as centenas de noites mal dormidas, as milhares de páginas já lidas, e quantos pacientes examinou. Não vou ser falso em desejar que seja tão feliz com o próximo estetoscópio da mesma forma como fomos juntos. Temo ser esquecido.

Só peço que não se esqueça do nosso momento mais bonito. Daquele, em que auscultamos pela primeira vez, as batidas nítidas de um coração acelerado. O coração daquela menina tão pequena que me segurava com força insistindo em me tirar de seus ouvidos. Um momento único, mágico, e eterno. Não tenho memória, por isso não posso dizer que jamais a esquecerei. Minha memória está em seus ouvidos, para o resto da vida, sempre que for auscultar alguém. De certa forma, estarei presente em seus ouvidos, para sempre. Os sons que entram por seus ouvidos, são as batidas do meu coração.



Após um longo tempo presa em reflexões, e inibida pela força do cansaço, Eliana levantou-se devagar, e seguiu em direção ao banheiro com esperança de que a água quente da banheira pudesse aliviar a incômoda dor em seus pés. Certamente, este foi um dia muito cansativo. E ainda teria que acordar uma hora mais cedo no dia seguinte, caso contrário, não haveria tempo para comprar um novo estetoscópio. Seguiu ao longo do corredor pensando se conseguiria jogar o velho estetoscópio fora.

Autoria de Andrea Pio